quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Tentando alcançar os astros ou meu encontro com Maria Bethânia

 


No dia 13 de fevereiro de 2025, Maria Bethânia completa 60 anos de carreira. Carreira esta iniciada em 1965, quando, aos 18 anos, ela subia ao palco do Teatro Oficina substituindo a cantora Nara Leão no show "Opinião". Foi um sucesso imediato, principalmente quando ela cantava, de maneira pungente, a canção "Carcará", de João do Vale e José Cândido. 

Nunca mais desceu daquele palco que modificou sua vida e a tornou uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos.

Para mim, a maior artista brasileira: inteira, plena, consciente de sua arte e extremamente sofisticada em sua simplicidade atordoante. 

Eu tive a honra de tê-la em um dos meus discos, em dueto na canção "O mundo é grande", de Sueli Costa e Carlos Drummond de Andrade, no CD "Thelmo Lins canta Drummond".

O texto a seguir, eu escrevi e publiquei no livro "1973 - O ano que reinventou a MPB", organizado por Célio Albuquerque e lançado em 2013.

Nesta singela postagem, eu homenageio a grande diva da música brasileira e minha eterna inspiração.


Uma crônica sobre o disco “Drama 3º Ato / Luz da Noite”, de Maria Bethânia


O primeiro contato que tive com a obra de Maria Bethânia foi em 1976, aos 13 anos de idade. Até então, na minha casa, em Itabirito, no interior de Minas Gerais, ouvíamos rádio, em especial a Atalaia, que praticamente programava o que hoje chamamos de música brega. E dá-lhe Paulo Sérgio, Ângelo Máximo, Diana, Vanusa, Odair José, Jane e Herondy, Roberto Carlos (sim, naquela época, ele era um dos expoentes!), entre outros nomes.  Não que fosse minha emissora favorita, mas era o que ficava no ar na casa de meus pais, numa época em que eu não sabia muito de Bossa Nova, Clube da Esquina ou Tropicalismo.

Pois é, nessa mesma emissora “brega”, começamos a ouvir “Olhos nos olhos”, de Chico Buarque, com... Maria Bethânia. No ano seguinte, em 1977, meu pai comprou uma radiola bonita, daquelas de móvel. Para ouvir, eu pedi um disco da Maria Bethânia chamado “Pássaro da Manhã”. No LP, gravado em estúdio, tinha “Tigresa”, “Um jeito estúpido de te amar”, “Teresinha”, entre outras canções, além de poemas de Fernando Pessoa e textos de Fauzi Arap e Clarice Lispector. 

Aquele disco foi o meu canal. A partir dali, queria saber tudo sobre esta cantora. Vale lembrar que não existia loja de discos em Itabirito e, é claro, internet e outros meios de comunicação com o mundo. Tínhamos o jornal, a enciclopédia e a curiosidade.

Bethânia abriu minha cabeça para grandes autores, músicas do passado, interpretadas por Dalva de Oliveira. Meu pai, que sempre foi fã de Nelson Gonçalves, dizia: “Eu conheço esta música, mas ela canta muito diferente do original”. Eu achava isso o máximo. Era (eu poderia arriscar?) interpretação. 

Eu era um adolescente nesta época e queria ser artista. Especialmente, ator. O teatro, a televisão e o cinema eram os meus interesses. As mensagens emitidas por aquele LP me instigavam a conhecer outras facetas da obra da cantora, que tinha um jeito teatral de interpretar as canções. De repente, eu também queria ser aquilo.

Daí, eu chego a “Drama 3º Ato / Luz da Noite”, de 1973. Muito mais do que aquele conteúdo musical e artístico interessante (embora sempre achasse a gravação com problemas técnicos), eu absorvia o estilo. Na capa, uma foto em preto e branco de Maria Bethânia retocada com gliter, que a fazia parecer um palhaço. Na parte interna do CD, uma foto do palco, com belas cortinas que lembravam um circo. Estampados na cortina, vários desenhos. Um deles, de Polly, remetia ao mesmo desenho da capa. 

Mas foi da contracapa que vinha o espanto maior. E não era a foto da sorridente Mãe Menininha do Gantois, com a letra da canção de Caymmi, inserida no repertório. Eram os versos, escritos com a caligrafia da cantora, que diziam: “Não pode alcançar os astros / Quem leva a vida de rastros / Quem é poeira do chão”. É engraçado comentar sobre isso hoje, neste texto, mas isso mudou toda a minha vida! Eu era um menino do interior, com ambições relativas, filho de pais comerciantes, que estava fadado a trabalhar no comércio local, vendendo linhas, agulhas, botões e retroses, quando senti que o mundo oferecia sonhos quase inimagináveis. 

Levava essas descobertas para minha turma de amigos que gostava de música, teatro, cinema, literatura. Discutíamos esses assuntos, essas músicas e esses poetas, que aos poucos foram consolidando minha profunda ligação com a arte.

O disco, gravado ao vivo, costurava canções novas (daquela época), como “Baioque” e “Tatuagem”, de Chico Buarque; “Esse cara”, de Caetano Veloso; “Como vai você”, de Antônio e Mário Marcos, grande sucesso; e “Filhos de Gandhi”, de Gilberto Gil; com canções do passado, revividas de forma magistral, como “Eu sou a outra” (sucesso de Carmem Costa, que conheci muito mais tarde), “E o mundo não se acabou”, de Assis Valente (famosa na voz da Pequena Notável), “Volta por cima”, de Paulo Vanzolini (o mesmo autor de “Ronda”), entre tantas outras.

Em determinado momento do LP/espetáculo, Bethânia interpretava um texto de Antônio Bivar sobre a vontade que ela tinha de ser trapezista e fugir com o circo. No texto, apareciam os personagens: o palhaço Polly, mencionado no cenário, Topsy e Diderlang, dono do circo, “que parecia um príncipe”. No final do texto, Bethânia emendava com “Estrela do Mar”, sucesso de Dalva. Comecei a fazer os links: textos dramáticos, Dalva, temas polêmicos daquela época e do passado; o negror de uma ditadura militar, que eu vivi somente nas canções; Chico, Gil, Caetano.

Senti que havia uma pesquisa de roteiro, que as canções e os textos tinham uma cadência. A cantora tinha o hábito também de trabalhar com o Terra Trio, o mesmo núcleo instrumental de “Pássaro da Manhã”. Mais tarde, colecionando os LP’s de Bethânia (hoje, eu tenho sua obra completa), notei que a virada artística da cantora de “Carcará” se deu no show “Rosa dos Ventos”, que já vinha impregnado desse estilo, amadurecido em “Drama 3º Ato / Luz da Noite” e, no ano seguinte, em “Cena Muda” (1974). E esse padrão foi retomado show após show, em constante aprimoramento da sua arte e das condições técnicas para gravação de um disco ao vivo. Eu poderia arriscar a dizer que conheci a música popular brasileira a partir de “Drama 3º Ato / Luz da Noite”. E, de forma especial, comecei a me entender melhor como ser humano a partir daquelas canções e texto. Germinava, ali, uma semente, que eu iria pôr em prática no futuro: atuar na área cultural.

Maria Bethânia, em depoimento ao escritor e crítico musical Rodrigo Faour, por ocasião da reedição de sua obra, em 2006, relatava que o show “Drama 3º Ato / Luz da Noite” era “mais sensorial, tocava mais na sensibilidade, enquanto ‘Rosa dos Ventos’ e ‘Cena Muda’ tinham discussões internas muito fortes”. A cantora cita que a sua influência vinha do trabalho de direção de Fauzi Arap, nome comum em quase todos os discos e shows da cantora nesse período. O diretor trazia para os trabalhos o universo poético e dramático, reforçando as características originais da cantora, que sempre esteve no caminho entre a música e o teatro. Nesse parâmetro, o disco unia as coisas que eu mais gostava. 

Comecei a mirar o meu olhar e o meu sentimento para outros artistas que circundavam aquela obra. Caetano eu já conhecia. Chico Buarque sempre esteve na minha lista dos melhores. Gil, com sua musicalidade visceral, para mim ainda era o do “Aquele Abraço”. Ouvindo aqueles discos, descobri novas paixões, que marcariam minha vida, como Sueli Costa, Fernando Pessoa e Dorival Caymmi. De quebra, comecei a prestar mais atenção em Gal Costa, Elis Regina, Nara Leão, Carmem Miranda, a já citada Dalva de Oliveira, Custódio Mesquita, Lamartine Babo, os Doces Bárbaros, os Novos Baianos... a lista era infinita.

Atualmente, considerando a atual geração de ouvintes, que usa aplicativos, pesquisa e baixa músicas na internet, e não tem hábito de comprar CD’s, penso o quanto aquele “Drama 3º Ato / Luz da Noite” fez por mim, tão carente de informações no interior de Minas, naquela década de 1970. 

Outro ponto que ressalto é o comportamental. Bethânia sempre teve uma postura diferente em relação ao que era o padrão estético da época. Seu rosto forte, as roupas sensuais, os cabelos revoltos e algumas atitudes às vezes agressivas me marcaram. Aquela mulher sustentava suas atitudes. Na revista Veja, ela aparecia beijando Gal Costa na boca, numa época em que o selinho da Hebe Camargo ainda estava no armário. Um escândalo. Perguntada por que desafinava nos shows, ela respondia que, como desafinava na vida, também desafinava na arte. Uau. O que era isso?

Em 1973, ano do lançamento de “Drama 3º Ato / Luz da Noite”, a vida era muito careta em Itabirito. Vivíamos em plena ditadura militar. Como eu era pequeno (tinha somente 10 anos e estava na então 4ª série primária), meus interesses não passavam da vontade de andar com minha bicicleta Caloi e brincar com meus amigos do bairro, em ruas ainda de terra. Nesse ano, o professor José Bastos Bittencourt ganhou a eleição para a prefeitura de Itabirito. Mas Bittencourt era do MDB, partido de oposição ao governo militar. Então, Itabirito comungava, com uma boa parte do país, da insatisfação com aquele regime. Para nós, crianças, ele era apenas o pai de um dos nossos colegas, o Lauro. Mais tarde, já com minha consciência política, é que percebi o quanto o crescimento da oposição foi importante para a reabertura política. 

Minha vida seguiu seu rumo. Ao invés de ser um comerciante, resolvi fazer teatro e jornalismo. Mais tarde, envolvi-me com a música. E, desta, para uma expressão artística que mescla várias manifestações, como a literatura, as artes plásticas, a fotografia, o cinema. A senha de “Drama 3º Ato / Luz da Noite” foi a minha saída do exílio. Ao invés de optar por um caminho, queria trilhar vários, queria abraçar o mundo. 

Em 2003, trinta anos depois do lançamento desse fantástico disco, eu me encontrei numa posição diferente. Estava gravando meu terceiro disco, “Thelmo Lins Canta Drummond”, com poemas musicados do poeta itabirano. Grandes compositores criaram canções especialmente para esse disco, como Sueli Costa, Francis Hime, Milton Nascimento, Joyce, José Miguel Wisnik, Belchior, Tavinho Moura, Ladston do Nascimento, Flavio Henrique, Renato Motha e Geraldinho Alvarenga. Quando recebi “O Mundo é Grande”, de Sueli Costa, logo percebi que havia na canção aquele mesmo estilo de lá de trás, quando ouvia Bethânia interpretar os clássicos da MPB. Numa atitude completamente ousada, minha produção fez contato com a cantora para saber se ela teria o interesse de participar de um disco independente de um cantor mineiro desconhecido. E não é que ela topou?

Quando a encontrei no estúdio da gravadora Biscoito Fino, no Rio de Janeiro, ao lado de, entre outros, do violonista Jaime Além, todo um ciclo se completou em minha vida. Estava ali, perto de mim, a minha grande referência artística e estética. Uma das maiores cantoras do Brasil e do mundo. Fizemos uma sessão de fotos, trocamos algumas palavras, presentes e abraços. Ela me disse, carinhosamente, que não estava se sentindo muito bem naquele dia, mas que tinha ido ao estúdio para cumprir aquele compromisso. E, ao ouvir a canção, ela havia até melhorado seu estado de saúde. Foi inesquecível. Um ano depois, recebi outro presente. Bethânia colocou a canção no seu CD anual, em um novo registro.

Ela, com certeza, não sabe dessas histórias, que hoje registro neste livro. Não tem ideia do quanto seu canto e sua performance modificaram a minha vida e a minha percepção da área artística. E, talvez, não tenha a dimensão do quanto é caudaloso o seu rio de vida e canções, que formam tantos afluentes. Mas eu estive na plateia de alguns dos seus principais shows ao longo dos últimos 20 anos, aplaudindo-a. Sempre quando lanço meus discos, envio-os para sua residência, no Rio de Janeiro. Uma vez, vendo uma pintura que representava a Fé, a Esperança e a Caridade no teto de uma igreja barroca em Sabará, pensei nela. Registrei a imagem, ampliei, emoldurei e mandei para ela de presente. 

Hoje, além do CD físico, “Drama 3º Ato / Luz da Noite” está no meu celular. Escuto toda vez que posso, ainda degustando aquelas maravilhosas canções. Ainda me emociono com a letra de “Drama”, do mano Caetano, que diz “eu minto, mas minha voz não mente. Minha voz soa exatamente de onde o corpo da alma de uma pessoa se produz a palavra eu”. Pois é, Bethânia, eu me produzi a partir de seus recados cifrados naquele disco. E tentei, ao meu jeito, alcançar os meus astros, recusando veementemente a ser poeira do chão. 


terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Frente a frente com Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant´Anna

 

No apartamento de Affonso e Marina, no Rio
(foto de Wagner Cosse)


À mesa do restaurante

Sentados frente a frente

Você e eu

Lemos.

Os outros nos olham

E pensam:

Que casal indiferente.

Enganam-se

É lendo juntos

Cada um no casulo de seu livro

Que você

E eu

Mais nos amamos

 

“Os outros”, Marina Colasanti

 

            Escrevo este texto no dia em que perdemos a escritora e poeta Marina Colasanti (1937-2025), uma das melhores autoras brasileiras. Não tenho a intenção de me debruçar sobre a sua rica biografia, mas tratar dos meus encontros inesquecíveis com ela.

            Além da admiração que sempre nutri por Marina, eu só estive com ela, pela primeira vez, em 2010 ou 2011, não sei precisar a data, quando ela esteve no Teatro Santo Agostinho (que administro desde 2009) para uma palestra.

            Desde 2002, venho me dedicando como cantor e compositor à poesia brasileira. Gravei discos a partir da obra de Drummond, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa e Leo Cunha. Graças a estes projetos, conheci e me tornei amigo do escritor Affonso Romano de Sant´Anna, marido de Marina. Affonso escreveu o texto de apresentação do meu disco “Thelmo Lins canta Drummond”, onde teceu elogiosos comentários a respeito de meu trabalho. Posteriormente, quando eu apresentava o programa “Arte no Ar”, da TV Horizonte, convidei-o a participar, num episódio totalmente dedicado ao poeta itabirano. Este programa pode ser acessado pelo YouTube.

            Em determinado momento surgiu a ideia de fazer também um disco de poemas musicados a partir da obra de Romano. E, melhor ainda, um disco cujo tema seria a poesia do casal, ou seja, de Marina e Affonso.

            Com a proposta “debaixo do braço”, fui buscar recursos para enfrentar a tarefa, que exigiria a liberação e o pagamento dos direitos autorais, a contratação dos compositores, dos músicos e direção musical, além de vários outros itens pertinentes à gravação de um álbum, como gravação, mixagem, masterização e prensagem. A princípio, o disco se chamaria “Affonso e Marina”.  

            Enquanto inscrevia o projeto nas leis de incentivo e em outros mecanismos de fomento, garimpei os compositores para participar da empreitada. Como na época eu capitaneava o programa de televisão “Arte no Ar”, recebia muitos artistas, principalmente da área musical de Belo Horizonte e Minas Gerais, e fui lá conhecendo novos nomes. Por outro lado, criei no mesmo Teatro Santo Agostinho, que administro, um projeto chamado “Caixa Acústica”, que proporcionava encontros entre talentos da música. Como a programação era definida por edital, fiquei conhecendo muita gente a partir dessa curadoria. Portanto, costumo dizer que “Affonso e Marina” foi fruto tanto do “Arte no Ar” como do “Caixa Acústica”.  

            As primeiras tentativas de patrocínio foram frustradas. Não houve interesse de empresas e nem mesmo das leis de incentivo em relação ao projeto, o que me deixou bastante desapontado. Insistentemente, iniciei uma “caçada” aos compositores que porventura quisessem participar do projeto, mesmo sabendo que não havia dinheiro ou perspectivas reais para sua realização. Coisas que nós artistas vivemos no Brasil, independente da experiência ou do currículo.

            Fui encontrando pessoas que abraçaram a ideia, como os compositores Lucas Avelar, Tom Nascimento, Gustavo Maguá, Isabella Bretz, Silvia Maneira, Ricardo Novais, Renato Barushi, Renato Savassi, Irene Bertachini, Déa Trancoso, Milena Torres, Rodrigo Borges e Wagner Cosse. Eles criaram belíssimas canções a partir dos poemas de Affonso e Marina, mesmo sem saber se o projeto iria vingar ou não.

            Depois de sete anos de batalha sem conseguir o financiamento, decidi assumir a gravação do álbum com   recursos próprios. E, para tal, teria que contar com a conivência, a aprovação e a boa vontade dos escritores/poetas para o empreendimento. A ideia de trocar os direitos autorais por unidades do CD foi acatada por eles, o que me deu o aval para retomar o processo. O custo dos direitos autorais costuma pesar no orçamento.

            Muitos poemas escolhidos foram frutos de uma pesquisa que realizei a partir da obra dos autores, mas alguns compositores propuseram outros temas, que melhoraram a proposta. Como, por exemplo, a do compositor e cantor Gustavo Maguá de musicar um poema de Romano chamado “Balada dos Casais”. Além da canção se encaixar perfeitamente no contexto, ela ainda virou o nome do álbum. Afinal, poderia haver um nome mais adequado para o disco de dois poetas que são marido e mulher?

            Como cantor, gravei todas as 14 canções. No estúdio, convidei a banda Trivial e o violonista Rogério Delayon para assumirem os arranjos e a direção musical das faixas. Para coroar, chamei as cantoras Sofia Cupertino e Nadeen Zakour para fazerem de duetos comigo. Nadeen, inclusive, era uma imigrante síria, que estava no Brasil fugindo da cruel situação de guerra em seu país natal. No dia em que ela colocou sua voz no estúdio todos ficamos arrepiados e emocionados com sua carga de sentimentos. A atriz Nilmara Gomes, um dos maiores talentos das artes cênicas de Minas, também colocou sua voz a serviço de um poema de Marina. A cereja do bolo – e que cereja! – foi a participação do ator Matheus Nachtergaele no disco. Ele gravou o poema “Estranhamento”, de Affonso, que integrou a faixa oito do disco. Matheus, para mim, é o maior ator brasileiro de sua geração, além de ser uma pessoa realmente encantada.

            Finalizamos a gravação em março de 2017 e, antes de mandarmos fazer a prensagem do CD, tomei como missão ir ao Rio de Janeiro e apresentar a demo para apreciação e aprovação dos escritores. A audição seria no apartamento de cobertura do casal, em Ipanema, com uma varanda com vista para o mar.

Na casa dos poetas

            Ali, Wagner Cosse e eu fomos recebidos com vinho e prosa, mas com muita simplicidade e hospitalidade. Como é bom conversar com pessoas inteligentes e com um rico repertório de assuntos! Depois desse preâmbulo, Affonso ligou a aparelhagem de som, colocou o disco para rodar e sentou-se em frente às caixas de som, de mãos dadas com Marina. E assim, ambos ouviram silenciosamente o disco, fazendo pequenos comentários aqui e ali sobre as gravações. Wagner e eu, em outro sofá defronte, ansiosos para saber como seria a avaliação final.

            Para nossa alegria e alívio, a recepção foi extremamente calorosa. Rasgaram elogios ao resultado e ficaram espantados por sua poesia permitir tantos ritmos e interpretações. Afinal, o disco tem de tudo: bossa nova, blues, balada, samba, música árabe, fado, para citar alguns.

            Marina ficou tão entusiasmada que resolveu cozinhar para nós. Desceu e na cozinha fez uma massa e, posteriormente, nos convidou para um jantar regado a muitas conversas e mais vinho. Ou seja, o encontro que talvez durasse duas ou três horas se estendeu até a madrugada. Saímos de lá levitando, plenos de felicidade e realizados. Depois de tanta luta, finalmente tínhamos a aprovação dos poetas.

            “Balada dos Casais” foi lançado em 2017, ano em que Affonso e Marina completaram 80 anos. O álbum está disponível nas principais plataformas de música, como Spotify, Deezer, Youtube Music, dentre outras. As cópias do CD, com encarte feito a partir de obras da artista plástica Selmma Weismmann, já se esgotaram.

            Encontrei Marina uma vez mais na Feira do Livro de Joinville, quando pudemos trocar algumas ideias. Ela sempre foi muito gentil e solícita. Dona de uma cultura imensa e com sua incrível literatura. Há muitos livros dela que eu poderia recomendar, mas um deles me emociona profundamente: “Mais de 100 histórias maravilhosas”, uma antologia de contos de fadas recriados pela autora. É sublime!

            Viva Marina Colasanti, que sua obra alivie a dor de não a ter mais habitando este planeta!


Link para ouvir "Balada dos Casais" : https://open.spotify.com/intl-pt/album/5WPj6S0WX1EreQRN3YNSNg?si=YHf2fmqNSfiD2nr0f25_5Q

           

Na Feira do Livro de Joinville, com Marina (vermelho)
e Antonieta Cunha (cabelos pretos)

Com Nilmara Gomes, no lançamento do CD

Com Selmma Weissmann, cujas obras ilustraram o encarte do CD

Com Nilmara, Nadeen, Sofia e Delayon, na gravação do disco

Com Matheus, a "cereja do bolo"


 


quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Revivendo o antigo Cine Pax

 

Na inauguração do novo Cine Teatro Liz Bastos
(foto de Wagner Cosse)


            O antigo Cine Pax foi reinaugurado em dezembro de 2024, após uma minuciosa reforma, e com o nome alterado para Cine Teatro Liz Bastos. Há 30 anos que ele não existia mais como cinema. A prefeitura havia comprado o espaço e, esporadicamente, ele era utilizado para reuniões, palestras e formaturas.

            Na noite da estreia, adentrando o espaço, vieram-me à tona muitos sentimentos e lembranças. Como, acredito, em várias pessoas que por ali passaram nos dias que se seguiram. Afinal, o cine foi inaugurado em 1959 e, deste então, vem provocando impacto em várias gerações com suas atrações tanto cinematográficas quanto artísticas. Muitos talentos passaram por ali. Dentre tantos, destaco a atriz Maria Fernanda que nos anos 1970 fez a leitura dramática do “Romanceiro da Inconfidência”, obra-prima de sua mãe, a poeta Cecília Meireles.

            Abordo aqui alguns fatos que me marcaram naquele local. Primeiramente, os festivais da canção realizados anualmente com acirrada competição. Eu mesmo já participei de dois deles: um como cantor, defendendo uma música de minha autoria; e outro como jurado, sujeito a todos os aviõezinhos de papel jogados pela plateia ora brincalhona, ora enfurecida.

            Foi no Cine Pax que eu conheci os filmes de Mazzaropi, Tarzan e d’Os Trapalhões. Menciono estes, pois eram os sucessos de bilheteria. Mas até mesmo o clássico “Sonata de Outono”, uma das melhores obras de Ingmar Bergman foi exibido lá. Com muita fila, diga-se de passagem, apesar de boa parte da plateia não fazer ideia da profunda dramaticidade desta película.

            No cinema também vi várias pornochanchadas e filmes pornôs, bem característicos daqueles anos 1980. Íamos em turma e o resultado era uma sequência de risadas (por incrível que pareça!). Anos mais tarde, na companhia de Gilvan Silva, descobri nos escombros do prédio uma lata e, nela, vários pedaços cortados desses mesmos filmes, contendo as cenas mais picantes, tal e qual o filme “Cinema Paradiso”.

            Foi no Cine Pax já bem debilitado que eu produzi uma apresentação da escritora Adélia Prado a Itabirito, em 2005, quando atuava como gestor cultural na Prefeitura Municipal. Adélia ficou impressionada com a quantidade de pessoas que foram lá para vê-la: todas as 700 poltronas estavam ocupadas e havia gente em pé! Tive a oportunidade de levar os compositores Fernando Brant e Tavinho Moura, em outra noite memorável. Ambas apresentações geraram programas especiais de televisão que, posteriormente, foram exibidos pela Rede Minas.

            Tempo e memória! Recordações! Lembranças tão amorosas de um tempo bom que renasce nas cinzas, graças a um trabalho primoroso dos novos gestores culturais da cidade. E que abre espaço mais novos sonhos, novas histórias e novos sentimentos.

domingo, 23 de janeiro de 2022

Elza, a medalha e eu

 


            Elza Soares encantou-se no dia 20 de janeiro de 2022, deixando todo o país comovido. Aos 91 anos, teve uma trajetória artística impressionante, iniciada em 1953, quando foi ao famoso programa de calouros de Ary Barroso e ouviu dele a frase: “nasce uma nova estrela na música brasileira”.

            Essa estrela viveu altos e baixos, rompendo com muitos padrões pré-estabelecidos pela sociedade, sofrendo – por isso – muitos revezes. Meu objetivo neste texto não é contar a história da grande cantora, mas relembrar um pouco de minha convivência com ela.

ENCONTRO DOS RIOS

            Em 2000, estava preparando para gravar meu primeiro disco solo, “Encontro dos Rios”, somente com canções de compositores que nasceram ou viveram em minha cidade natal, Itabirito, na Região dos Inconfidentes em Minas Gerais. O município tem longa tradição musical, marcada por corporações musicais (uma delas com mais de cem anos), inúmeros compositores e intérpretes.

            Convidei a historiadora Rogéria Malheiros para trabalhar comigo no recolhimento deste repertório nas casas dos autores que conhecíamos e nos acervos musicais, encontrando mais de 500 partituras, a maioria inédita, ou seja, que não tinham merecido nenhum registro fonográfico.

            Escolher dentre tantas as canções que iriam constar no disco foi uma tarefa dificílima. Ouvimos muitas fitas cassete, recebemos muitas partituras e gravamos alguns temas que não estavam registrados em nenhum desses canais. No final das contas, selecionamos 15 canções e mais uma pequena vinheta, com trechos dos hinos dos clubes de Itabirito.

            Da turma mais antiga, autores que já haviam falecido naquela época, estavam Tertuliano Silva (1897-1973), José Onofre Neiva, o maestro Dungas (1913-1985), Pe. Francisco Xavier Gomes (1918-1981), Francisco Silva (1919-1999) e João Paschoal (1927-1998). Raimunda da Costa Salvador de Oliveira (1922), a única mulher compositora que estava registrada no disco, ainda estava viva quando fizemos o disco, embora em estado de coma. A autora faleceu anos mais tarde.

            Dos contemporâneos, gravamos Toninho Telefunken (1957), Kelver Crispim (1962), Ubiraney Silva (1963) e Marcio Lima (1968). Também participei como autor ou coautor em algumas faixas. Dentre elas, “Veja a banda chegar”, do maestro Dungas que, até então, era apenas um tema instrumental. Com o consentimento da família, eu pus letra para poder gravá-la.

            O disco teve inúmeras participações especiais, como as cantoras Linê Maria, Mimita Malheiros e Dirinha, representantes da Era de Ouro da música local; cantores dos Canarinhos de Itabirito, o cavaquinhista Waldir Silva, a pianista Graça Bastos, a dupla Frederico e Christiano, dentre outros. O projeto teve inspirados arranjos realizados por Geraldo Vianna e contou com alguns dos melhores músicos da cena mineira.

            Como citei anteriormente, João Paschoal estava dentre os compositores escolhidos para participar do projeto. Estive em sua residência, aonde conversei com as filhas, que eram detentoras de seu patrimônio. Paschoal era uma figura ímpar. Nos anos 1960 e 70, foi proprietário da gravadora Lugunel e, por ela, gravava seus discos, tornando-se o “Rei do Rojão Mineiro”. Além disso, foi o responsável pela direção do Congado (ele morava ao lado da igreja do Rosário, em Itabirito, construída por escravos no século XVIII).

VIVO A PENSAR

As filhas de Paschoal me repassaram várias fitas e discos, de onde pude escolher dois temas musicais que compactei na faixa “Vivo a pensar”. Na surdina, sem que os familiares soubessem, convidei Elza Soares para gravar no meu disco, cantando exatamente a música criada por Paschoal.

Conheci a cantora em um show no Teatro Alterosa, em Belo Horizonte, no final dos anos 1990. Ela ainda não tinha resgatado o público que tivera no início de sua carreira, mas também não se encontrava em uma situação tão delicada quanto estava no início dos anos 1980, quando viveu vários problemas pessoais e financeiros, como a morte do jogador de futebol Garrincha, seu antigo parceiro, e do filho que os dois tiveram, Garrinchinha (que morreu em um acidente de carro, em 1986, aos 10 anos de idade).

Aquela mulher “dura na queda” estava cantando mais do que nunca. A dor da perda dos parentes e dos problemas que enfrentou na época da Ditadura Militar, quando teve sua casa metralhada, fizeram uma marca profunda em seu canto. Quando eu a ouvi interpretando “Meu Guri”, de Chico Buarque, à capela, naquele show, fiquei definitivamente apaixonado por ela.

Elza aceitou fazer a participação especial no meu disco, aproveitando que viria a Belo Horizonte para fazer uma apresentação. O disco ainda não tinha as bases completas e Elza gravou a voz apenas com o acompanhamento do violão-guia, feito por Geraldo, e do baterista Neném. Foi um show de suingue!

Quando fui colocar a minha voz, dias depois, para concluir o dueto, fiquei sem saber exatamente o que faria, já que ela simplesmente tinha deixado uma gravação arrasadora. Tentei (e acho que com algum sucesso) inserir minha participação, sempre brincando com as quebradas que ela tinha inserido na gravação e respondendo à sua proposta musical.

“Vivo a pensar” foi a faixa mais tocada do disco e me colocou em evidência, pois naquele tempo eu havia sido o primeiro cantor daquela geração a gravar com a grande Elza. Fiz um lançamento do disco em Itabirito, com a presença de todos os autores e familiares. Quando as filhas de Paschoal ouviram a faixa pela primeira vez não acreditaram que uma composição do seu pai pudesse ser registrada naquela voz tão impressionante e emblemática de música brasileira. Foi um chororô danado de todos os que estavam presentes. E um momento inesquecível de minha carreira.

“Encontro dos Rios” foi lançado em 2001 e, em setembro daquele ano, eu recebi da Câmara Municipal de Itabirito a Medalha Francisco Homem del Rey, outorgada às pessoas que contribuem com o desenvolvimento social e cultural de Itabirito. Fui o mais jovem itabiritense a receber essa honraria, que guardo com muito carinho.

De acordo com o crítico Jorge Fernando do Santos, do jornal Estado de Minas (14/02/01), “Encontro dos Rios” é “um projeto que merece aplausos e um lugar de honra nas estantes que guardam a memória de Minas”.

 

Ouça “Vivo a pensar” em:

https://soundcloud.com/tw-cultural/vivo-a-pensar


A proposta de me premiar com a Medalha Francisco Homem del Rey foi iniciativa do vereador Arnaldo, a quem eu presto aqui minha homenagem e meus agradecimentos.

 

 

 

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

O dia em que Elis morreu

Aos 18 anos, eu estava em Paraty quando Elis Regina morreu.
Arte @thelmolins

    No dia 19 de janeiro de 1982, a cantora Elis Regina morreu. Portanto, há 40 anos! Viajei no passado e me lembrei de fatos que aconteceram na época. A notícia deixou todo o país estupefato, considerando que ela era, naquela época, uma das cantoras de maior visibilidade na mídia nacional e internacional.
    
    Eu estava em Paraty, cidade histórica do litoral fluminense, quando soube do acontecimento. Era a primeira vez que eu visitava o local, ao lado de várias queridas amigas*. Estávamos acampados em um terreno na área central do município. Eu tinha apenas 18 anos. Passamos o dia inteiro passeando pelas praias da região. Ao chegarmos no local do acampamento, foi que soubemos do acontecimento.

    Ficamos sem chão. Para homenageá-la, entoei, enquanto me banhava, alguns de seus sucessos, a todos pulmões. Não economizei na cantoria. Dá-lhe “O Bêbado e a Equilibrista”, “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá”, “Casa de Campo”, dentre outros. “Caiiiiiia a tarde feito um viaduuuuuto...!!!” Para piorar, a água do chuveiro ela gelada, o que sempre provocava em todos nós um choque inicial, que vinha acompanhado por um berro. 

    À noite, ousei pedir aos donos da casa para assistir ao Jornal Nacional, porque queríamos saber das notícias. Na barraca, com certeza, não tinha nem rádio nem TV. Os proprietários concordaram. Estávamos tão chocados que nem notamos que estávamos ocupando todos os sofás na sala de estar, deixando os familiares de pé e sem saber o que fazer. “Que povo inconveniente”, devem ter pensado.

    Alheios a este sentimento, acompanhamos todo o noticiário. A primeira reportagem era sobre o desabamento de uma passarela em Foz do Iguaçu, que havia feito várias vítimas. O teor da enxurrada e da tempestade se confundia com as súplicas dos visitantes. O último assunto foi o falecimento da grande cantora. À medida que a reportagem avançava, ficávamos mais à vontade ainda e deixamos desabar o nosso pranto, cada vez mais contundente, como se fosse um parente que estivesse passando por aquela situação. As lágrimas rolavam aos borbotões. Somente quando o jornal finalizou é que percebemos, ao olhar para trás, que o pessoal da casa nos olhava de cara fechada. 

    Inconvenientes ou não, estávamos diante de uma morte trágica. Elis tinha apenas 35 anos! Como amantes da música brasileira, aquele dia se tornou para sempre inesquecível. Era impossível não nos emocionarmos. Anos mais tarde, também em Paraty, vivenciei a queda das Torres Gêmeas, mas isso é assunto para outra postagem. 

 * Minhas companheiras de viagem foram: Tuta, Beth, Mariângela, Valéria e Claudia.

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