domingo, 23 de janeiro de 2022

Elza, a medalha e eu

 


            Elza Soares encantou-se no dia 20 de janeiro de 2022, deixando todo o país comovido. Aos 91 anos, teve uma trajetória artística impressionante, iniciada em 1953, quando foi ao famoso programa de calouros de Ary Barroso e ouviu dele a frase: “nasce uma nova estrela na música brasileira”.

            Essa estrela viveu altos e baixos, rompendo com muitos padrões pré-estabelecidos pela sociedade, sofrendo – por isso – muitos revezes. Meu objetivo neste texto não é contar a história da grande cantora, mas relembrar um pouco de minha convivência com ela.

ENCONTRO DOS RIOS

            Em 2000, estava preparando para gravar meu primeiro disco solo, “Encontro dos Rios”, somente com canções de compositores que nasceram ou viveram em minha cidade natal, Itabirito, na Região dos Inconfidentes em Minas Gerais. O município tem longa tradição musical, marcada por corporações musicais (uma delas com mais de cem anos), inúmeros compositores e intérpretes.

            Convidei a historiadora Rogéria Malheiros para trabalhar comigo no recolhimento deste repertório nas casas dos autores que conhecíamos e nos acervos musicais, encontrando mais de 500 partituras, a maioria inédita, ou seja, que não tinham merecido nenhum registro fonográfico.

            Escolher dentre tantas as canções que iriam constar no disco foi uma tarefa dificílima. Ouvimos muitas fitas cassete, recebemos muitas partituras e gravamos alguns temas que não estavam registrados em nenhum desses canais. No final das contas, selecionamos 15 canções e mais uma pequena vinheta, com trechos dos hinos dos clubes de Itabirito.

            Da turma mais antiga, autores que já haviam falecido naquela época, estavam Tertuliano Silva (1897-1973), José Onofre Neiva, o maestro Dungas (1913-1985), Pe. Francisco Xavier Gomes (1918-1981), Francisco Silva (1919-1999) e João Paschoal (1927-1998). Raimunda da Costa Salvador de Oliveira (1922), a única mulher compositora que estava registrada no disco, ainda estava viva quando fizemos o disco, embora em estado de coma. A autora faleceu anos mais tarde.

            Dos contemporâneos, gravamos Toninho Telefunken (1957), Kelver Crispim (1962), Ubiraney Silva (1963) e Marcio Lima (1968). Também participei como autor ou coautor em algumas faixas. Dentre elas, “Veja a banda chegar”, do maestro Dungas que, até então, era apenas um tema instrumental. Com o consentimento da família, eu pus letra para poder gravá-la.

            O disco teve inúmeras participações especiais, como as cantoras Linê Maria, Mimita Malheiros e Dirinha, representantes da Era de Ouro da música local; cantores dos Canarinhos de Itabirito, o cavaquinhista Waldir Silva, a pianista Graça Bastos, a dupla Frederico e Christiano, dentre outros. O projeto teve inspirados arranjos realizados por Geraldo Vianna e contou com alguns dos melhores músicos da cena mineira.

            Como citei anteriormente, João Paschoal estava dentre os compositores escolhidos para participar do projeto. Estive em sua residência, aonde conversei com as filhas, que eram detentoras de seu patrimônio. Paschoal era uma figura ímpar. Nos anos 1960 e 70, foi proprietário da gravadora Lugunel e, por ela, gravava seus discos, tornando-se o “Rei do Rojão Mineiro”. Além disso, foi o responsável pela direção do Congado (ele morava ao lado da igreja do Rosário, em Itabirito, construída por escravos no século XVIII).

VIVO A PENSAR

As filhas de Paschoal me repassaram várias fitas e discos, de onde pude escolher dois temas musicais que compactei na faixa “Vivo a pensar”. Na surdina, sem que os familiares soubessem, convidei Elza Soares para gravar no meu disco, cantando exatamente a música criada por Paschoal.

Conheci a cantora em um show no Teatro Alterosa, em Belo Horizonte, no final dos anos 1990. Ela ainda não tinha resgatado o público que tivera no início de sua carreira, mas também não se encontrava em uma situação tão delicada quanto estava no início dos anos 1980, quando viveu vários problemas pessoais e financeiros, como a morte do jogador de futebol Garrincha, seu antigo parceiro, e do filho que os dois tiveram, Garrinchinha (que morreu em um acidente de carro, em 1986, aos 10 anos de idade).

Aquela mulher “dura na queda” estava cantando mais do que nunca. A dor da perda dos parentes e dos problemas que enfrentou na época da Ditadura Militar, quando teve sua casa metralhada, fizeram uma marca profunda em seu canto. Quando eu a ouvi interpretando “Meu Guri”, de Chico Buarque, à capela, naquele show, fiquei definitivamente apaixonado por ela.

Elza aceitou fazer a participação especial no meu disco, aproveitando que viria a Belo Horizonte para fazer uma apresentação. O disco ainda não tinha as bases completas e Elza gravou a voz apenas com o acompanhamento do violão-guia, feito por Geraldo, e do baterista Neném. Foi um show de suingue!

Quando fui colocar a minha voz, dias depois, para concluir o dueto, fiquei sem saber exatamente o que faria, já que ela simplesmente tinha deixado uma gravação arrasadora. Tentei (e acho que com algum sucesso) inserir minha participação, sempre brincando com as quebradas que ela tinha inserido na gravação e respondendo à sua proposta musical.

“Vivo a pensar” foi a faixa mais tocada do disco e me colocou em evidência, pois naquele tempo eu havia sido o primeiro cantor daquela geração a gravar com a grande Elza. Fiz um lançamento do disco em Itabirito, com a presença de todos os autores e familiares. Quando as filhas de Paschoal ouviram a faixa pela primeira vez não acreditaram que uma composição do seu pai pudesse ser registrada naquela voz tão impressionante e emblemática de música brasileira. Foi um chororô danado de todos os que estavam presentes. E um momento inesquecível de minha carreira.

“Encontro dos Rios” foi lançado em 2001 e, em setembro daquele ano, eu recebi da Câmara Municipal de Itabirito a Medalha Francisco Homem del Rey, outorgada às pessoas que contribuem com o desenvolvimento social e cultural de Itabirito. Fui o mais jovem itabiritense a receber essa honraria, que guardo com muito carinho.

De acordo com o crítico Jorge Fernando do Santos, do jornal Estado de Minas (14/02/01), “Encontro dos Rios” é “um projeto que merece aplausos e um lugar de honra nas estantes que guardam a memória de Minas”.

 

Ouça “Vivo a pensar” em:

https://soundcloud.com/tw-cultural/vivo-a-pensar


A proposta de me premiar com a Medalha Francisco Homem del Rey foi iniciativa do vereador Arnaldo, a quem eu presto aqui minha homenagem e meus agradecimentos.

 

 

 

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

O dia em que Elis morreu

Aos 18 anos, eu estava em Paraty quando Elis Regina morreu.
Arte @thelmolins

    No dia 19 de janeiro de 1982, a cantora Elis Regina morreu. Portanto, há 40 anos! Viajei no passado e me lembrei de fatos que aconteceram na época. A notícia deixou todo o país estupefato, considerando que ela era, naquela época, uma das cantoras de maior visibilidade na mídia nacional e internacional.
    
    Eu estava em Paraty, cidade histórica do litoral fluminense, quando soube do acontecimento. Era a primeira vez que eu visitava o local, ao lado de várias queridas amigas*. Estávamos acampados em um terreno na área central do município. Eu tinha apenas 18 anos. Passamos o dia inteiro passeando pelas praias da região. Ao chegarmos no local do acampamento, foi que soubemos do acontecimento.

    Ficamos sem chão. Para homenageá-la, entoei, enquanto me banhava, alguns de seus sucessos, a todos pulmões. Não economizei na cantoria. Dá-lhe “O Bêbado e a Equilibrista”, “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá”, “Casa de Campo”, dentre outros. “Caiiiiiia a tarde feito um viaduuuuuto...!!!” Para piorar, a água do chuveiro ela gelada, o que sempre provocava em todos nós um choque inicial, que vinha acompanhado por um berro. 

    À noite, ousei pedir aos donos da casa para assistir ao Jornal Nacional, porque queríamos saber das notícias. Na barraca, com certeza, não tinha nem rádio nem TV. Os proprietários concordaram. Estávamos tão chocados que nem notamos que estávamos ocupando todos os sofás na sala de estar, deixando os familiares de pé e sem saber o que fazer. “Que povo inconveniente”, devem ter pensado.

    Alheios a este sentimento, acompanhamos todo o noticiário. A primeira reportagem era sobre o desabamento de uma passarela em Foz do Iguaçu, que havia feito várias vítimas. O teor da enxurrada e da tempestade se confundia com as súplicas dos visitantes. O último assunto foi o falecimento da grande cantora. À medida que a reportagem avançava, ficávamos mais à vontade ainda e deixamos desabar o nosso pranto, cada vez mais contundente, como se fosse um parente que estivesse passando por aquela situação. As lágrimas rolavam aos borbotões. Somente quando o jornal finalizou é que percebemos, ao olhar para trás, que o pessoal da casa nos olhava de cara fechada. 

    Inconvenientes ou não, estávamos diante de uma morte trágica. Elis tinha apenas 35 anos! Como amantes da música brasileira, aquele dia se tornou para sempre inesquecível. Era impossível não nos emocionarmos. Anos mais tarde, também em Paraty, vivenciei a queda das Torres Gêmeas, mas isso é assunto para outra postagem. 

 * Minhas companheiras de viagem foram: Tuta, Beth, Mariângela, Valéria e Claudia.

Elza, a medalha e eu

              Elza Soares encantou-se no dia 20 de janeiro de 2022, deixando todo o país comovido. Aos 91 anos, teve uma trajetória artístic...