Elza Soares
encantou-se no dia 20 de janeiro de 2022, deixando todo o país comovido. Aos 91
anos, teve uma trajetória artística impressionante, iniciada em 1953, quando
foi ao famoso programa de calouros de Ary Barroso e ouviu dele a frase: “nasce
uma nova estrela na música brasileira”.
Essa estrela
viveu altos e baixos, rompendo com muitos padrões pré-estabelecidos pela
sociedade, sofrendo – por isso – muitos revezes. Meu objetivo neste texto não é
contar a história da grande cantora, mas relembrar um pouco de minha convivência
com ela.
ENCONTRO DOS RIOS
Em 2000,
estava preparando para gravar meu primeiro disco solo, “Encontro dos Rios”,
somente com canções de compositores que nasceram ou viveram em minha cidade
natal, Itabirito, na Região dos Inconfidentes em Minas Gerais. O município tem
longa tradição musical, marcada por corporações musicais (uma delas com mais de
cem anos), inúmeros compositores e intérpretes.
Convidei a
historiadora Rogéria Malheiros para trabalhar comigo no recolhimento deste
repertório nas casas dos autores que conhecíamos e nos acervos musicais,
encontrando mais de 500 partituras, a maioria inédita, ou seja, que não tinham
merecido nenhum registro fonográfico.
Escolher
dentre tantas as canções que iriam constar no disco foi uma tarefa dificílima.
Ouvimos muitas fitas cassete, recebemos muitas partituras e gravamos alguns
temas que não estavam registrados em nenhum desses canais. No final das contas,
selecionamos 15 canções e mais uma pequena vinheta, com trechos dos hinos dos
clubes de Itabirito.
Da turma
mais antiga, autores que já haviam falecido naquela época, estavam Tertuliano
Silva (1897-1973), José Onofre Neiva, o maestro Dungas (1913-1985), Pe. Francisco
Xavier Gomes (1918-1981), Francisco Silva (1919-1999) e João Paschoal
(1927-1998). Raimunda da Costa Salvador de Oliveira (1922), a única mulher
compositora que estava registrada no disco, ainda estava viva quando fizemos o
disco, embora em estado de coma. A autora faleceu anos mais tarde.
Dos
contemporâneos, gravamos Toninho Telefunken (1957), Kelver Crispim (1962),
Ubiraney Silva (1963) e Marcio Lima (1968). Também participei como autor ou coautor
em algumas faixas. Dentre elas, “Veja a banda chegar”, do maestro Dungas que,
até então, era apenas um tema instrumental. Com o consentimento da família, eu
pus letra para poder gravá-la.
O disco teve
inúmeras participações especiais, como as cantoras Linê Maria, Mimita Malheiros
e Dirinha, representantes da Era de Ouro da música local; cantores dos
Canarinhos de Itabirito, o cavaquinhista Waldir Silva, a pianista Graça Bastos,
a dupla Frederico e Christiano, dentre outros. O projeto teve inspirados
arranjos realizados por Geraldo Vianna e contou com alguns dos melhores músicos
da cena mineira.
Como citei
anteriormente, João Paschoal estava dentre os compositores escolhidos para
participar do projeto. Estive em sua residência, aonde conversei com as filhas,
que eram detentoras de seu patrimônio. Paschoal era uma figura ímpar. Nos anos
1960 e 70, foi proprietário da gravadora Lugunel e, por ela, gravava seus
discos, tornando-se o “Rei do Rojão Mineiro”. Além disso, foi o responsável
pela direção do Congado (ele morava ao lado da igreja do Rosário, em Itabirito,
construída por escravos no século XVIII).
VIVO A PENSAR
As filhas de Paschoal me repassaram
várias fitas e discos, de onde pude escolher dois temas musicais que compactei
na faixa “Vivo a pensar”. Na surdina, sem que os familiares soubessem, convidei
Elza Soares para gravar no meu disco, cantando exatamente a música criada por
Paschoal.
Conheci a cantora em um show no
Teatro Alterosa, em Belo Horizonte, no final dos anos 1990. Ela ainda não tinha
resgatado o público que tivera no início de sua carreira, mas também não se
encontrava em uma situação tão delicada quanto estava no início dos anos 1980,
quando viveu vários problemas pessoais e financeiros, como a morte do jogador
de futebol Garrincha, seu antigo parceiro, e do filho que os dois tiveram,
Garrinchinha (que morreu em um acidente de carro, em 1986, aos 10 anos de
idade).
Aquela mulher “dura na queda” estava
cantando mais do que nunca. A dor da perda dos parentes e dos problemas que
enfrentou na época da Ditadura Militar, quando teve sua casa metralhada,
fizeram uma marca profunda em seu canto. Quando eu a ouvi interpretando “Meu
Guri”, de Chico Buarque, à capela, naquele show, fiquei definitivamente
apaixonado por ela.
Elza aceitou fazer a participação
especial no meu disco, aproveitando que viria a Belo Horizonte para fazer uma
apresentação. O disco ainda não tinha as bases completas e Elza gravou a voz
apenas com o acompanhamento do violão-guia, feito por Geraldo, e do baterista
Neném. Foi um show de suingue!
Quando fui colocar a minha voz, dias
depois, para concluir o dueto, fiquei sem saber exatamente o que faria, já que
ela simplesmente tinha deixado uma gravação arrasadora. Tentei (e acho que com
algum sucesso) inserir minha participação, sempre brincando com as quebradas
que ela tinha inserido na gravação e respondendo à sua proposta musical.
“Vivo a pensar” foi a faixa mais
tocada do disco e me colocou em evidência, pois naquele tempo eu havia sido o
primeiro cantor daquela geração a gravar com a grande Elza. Fiz um lançamento
do disco em Itabirito, com a presença de todos os autores e familiares. Quando
as filhas de Paschoal ouviram a faixa pela primeira vez não acreditaram que uma
composição do seu pai pudesse ser registrada naquela voz tão impressionante e
emblemática de música brasileira. Foi um chororô danado de todos os que estavam
presentes. E um momento inesquecível de minha carreira.
“Encontro dos Rios” foi lançado em
2001 e, em setembro daquele ano, eu recebi da Câmara Municipal de Itabirito a
Medalha Francisco Homem del Rey, outorgada às pessoas que contribuem com o
desenvolvimento social e cultural de Itabirito. Fui o mais jovem itabiritense a
receber essa honraria, que guardo com muito carinho.
De acordo com o crítico Jorge
Fernando do Santos, do jornal Estado de Minas (14/02/01), “Encontro dos Rios” é
“um projeto que merece aplausos e um lugar de honra nas estantes que guardam a
memória de Minas”.
Ouça “Vivo a pensar” em:
https://soundcloud.com/tw-cultural/vivo-a-pensar
A proposta de me premiar com a Medalha Francisco Homem del Rey foi iniciativa do vereador Arnaldo, a quem eu presto aqui minha homenagem e meus agradecimentos.
Que texto delicioso de ler! Viajei nas histórias de Itabirito. Parabéns pelo trabalho, Thelmo, e por ter tido a parceria da grande Elza Soares.
ResponderExcluirAgradecido, minha querida amiga. Abraços
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